Silêncio

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“Só o silêncio é que vale para sempre, o silêncio, Bia, era a nossa língua oficial, pelo silêncio podíamos dizer tudo com exatidão, sem o risco de não sermos compreendidos, mas, em alguma época ancestral, deu-se a queda, tentamos experimentar o máximo do silêncio e, então, caímos, voltamos ao degrau anterior – as palavras -, por isso o abismo está nos extremos dos nossos sentidos, jamais no centro, o sol, se estiver lá longe, nós nem o notaremos, mas o sol, de perto, nos cegará; o sussurro mal pode ser ouvido, assim como o trovão que nos unsurdece; nós vivemos pouco, quase nada, no núcleo dos eventos, Bia, nós vivemos o tempo todo à beira: o silêncio é a nossa linguagem, por gerações e gerações nos ensinaram a falar quando estávamos no pleno entendimento desse idioma, e, então, passamos a usar as palavras, para traduzir o que é ou foi melhor dito silenciosamente, e não há como transferir uma frase, uma sentença, um poema de uma língua para outra sem perder algo vital de sua substância, uma metáfora só é uma metáfora porque dis o que não se pode dizer de outra maneira, é a tentativa de driblar o incomunicável, e seria tão mais fácil se pudéssemos – de novo – nos movermos sobre a linha do silêncio, o silêncio, Bia, como se de volta ao paraíso, nos redimiria, nós deveríamos aprender os seus sentidos antes da palavra; se eu pudesse, eu te ensinava todo o abecedário do silêncio antes da fala, eu desaprenderia a falar e adotaria como língua todo o (meu) humano silenciar; se eu conseguisse reaprender, contra séculos de condicionamento linguístico, a me expressar nesse idioma, eu não precisaria escrever este caderno, eu apenas me aproximaria, como agora, de teu berço, me debruçaria à tua frente, e não diria nada, e aí, eu tneho certeza, tu não irias ler apenas o meu rosto, tu irias ler o que o silêncio significa no meu rosto, foi através do silêncio que eu soube de tua vinda, eu cheguei em casa exausto aquela noite e, mal abri a porta, a tua mãe, que me esperava cochilando no sofá, ergueu-se lentamente, e eu soube que ela estava grávida, porque tudo o mais era quietude, não era preciso dizer o que nela estava dito –  em silêncio, Bia, pode-se claramente se uma mulher carrega um filho, mesmo que o seu ventre não o diga; pode-se inclusive ver se esse filho terá cabelos lisos ou não, pode-se até ver o quanto de tempo sua vida, ainda em fabricação, suportará; em silêncio, pode-se ouvir, na zona fronteiriça entre o ontem e o hoje, o motor do acaso movendo a manhã, também foi assim, num momento sem som, que, entrando no quarto de tua avó, anos atrás, eu soube que teu avô André estava morrendo; é no silêncio que um corpo clama pelo outro; só a máxima quietude em nós e na natureza nos permite decifrar o texto que está escrito, Bia, o silêncio, embora pareça a ausência, eu te asseguro, é a presença em sua forma mais vívida, toda e qualquer palavra é menos que o silêncio, porque nasceu dele, do útero do silêncio vem o murmúrio, o gemido, o grito, o urro, todos os outros dialetos ea té a babel das páginas em branco, se eu falo, se eu escrevo, Bia, é porque eu não sei, ninguém sabe, como evitar a degradação do silêncio; e no silêncio foi que tive a certeza, ao ver aquela professora substituta, que não era ela, mas seria ela, que eu gastaria a minha vida, não à primeira vista, e, sim, depois de fechar os olhos para o que havia ao redor, extraindo de seu redor tudo o que não era ela; é no silêncio que se pede perdão, Bia, é no silêncio que poder descobrir nas tuas entranhas as minhas fragilidades, é nele, no silêncio, que o nada se exalta, e a súplica se renova, e a opressão se dissolve, é no silêncio, Bia, que a memória resume as horas vividasa, é no silêncio que o rio nos salpica o rosto com suas gotas, é no mais depurado silêncio que se irriga os vazios, o silêncio, Bia, é que faz mais belo o luar, quietas são as carícias, as cores que calam na plumagem dos pássaros, as marcas na pele (embora abaixo dela a usina da vida continue a rugir sem cessar), é o silêncio que sempre sobra depois que a porta se fechou, é no silêncio que se mutilam as mentiras, que as cicatrizes se mostram, é no silêncio que tu sentistes o mundo pela primeira vez antes que a mão do médico estalasse em tuas costas para que vomitasse o grito, é no silêncio que eu te inicio não no mundo, num caminho espiritual ou numa crença, é no silêncio que eu te inicio num saber esotérico milenar, em jogos de ironia, em teoremas insolúveis, não, é no silêncio, Bia, que eu te inicio em mim – pisar no meu silêncio é o teu primeiro passo pra me conhecer -, é no silêncio, filha, que eu te inicio em quem tu terás – logo – de assistir o fim.”

Caderno de um ausente
João Anzanello Carrascoza

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